Tese O Sentido e o Alcance Social do Tradicionalismo - Jarbas Lima
PARTE I
Os 150 anos da Paz do Ponche Verde não poderiam ter melhor celebração do que este magnífico Congresso Tradicionalista, que se realiza em Dom Pedrito, de 5 a 8 de janeiro de 1995.
Foi a Paz do Ponche Verde, a Paz Farroupilha, que consolidou na alma dos gaúchos aquela convicção que constitui hoje a essência do espírito tradicionalista, o sentimento de pertinência a duas pátrias: o Brasil, pátria maior, comunidade das províncias, à qual o Rio Grande se reintegrava depois de 10 anos de luta, com a consciência de que o fazia voluntariamente, cumprindo seu destino histórico: e o Rio Grande, a pátria local, a comunidade regional, construída palmo a palmo com o sacrifício e o sangue dos antepassados, que conquistaram estes campos neutrais expandindo para muito além do Meridiano de Tordesilhas (Laguna, Santa Catarina), a fronteira do antigo Império Português nas Américas.
Só pode entender a formação da sociedade Rio-grandense quem compreender primeiro o conceito de fronteira móvel, em que se escreveu nossa história. Não se tratava, porém, dos confins da civilização, daqueles rendilhados ou franjas de expansão da sociedade colonial portuguesa, marcados pelos ethos bandeirantista, de discutível sustentação moral. Trata-se, isto sim, da refrega de dois impérios europeus em confronto, na disputa por ambicionadas posições geo-políticas na América Meridional. Os líderes regionais de então, um misto de militares, políticos e estancieiros, conferiram ao Rio Grande desde cedo uma dimensão de modernidade que era considerada prematura no Brasil. (Bem haverá de recordar estes fatos o observador que verifica hoje a atuação dinâmica dos gaúchos na expansão da fronteira agrícola em quase todos os estados do Brasil numa saudável invasão de espírito tradicionalista que se traduz em pujança e produtividade para a pátria comum).
Enquanto as demais províncias brasileiras viviam mais a saga da ocupação que a da conquista, o Rio Grande realizava simultaneamente a conquista e a ocupação. E o fazia séculos depois, quando os outros Estados brasileiros já desfrutavam com tranquilidade o delineamento de suas fronteiras. Assim, por exemplo, quando os primeiros europeus pisaram o solo do Rio Grande para nele permanecer, a Bahia, era uma província antiga e lá já estavam em ruínas as fortalezas erguidas pelos primeiros colonizadores. Mas o fato de termos começado depois, longe de nos fazer conformados com o atraso, serviam de estímulo para nos colocarmos na frente. Este descompasso temporal de nossa história explica a pressa com que o Rio Grande se fez e se faz. É uma idiossincrasia de nossa personalidade. Gostamos de fazer as coisas por nossa iniciativa e o fazemos com pressa. Aos gaúchos caberia como uma luva a famosa passagem do cancioneiro popular: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Pois foi assim que se fez, com maestria, aquela hora de paz nos campos do Ponche Verde. Os documentos que registraram a memória daqueles grandes dias vividos pelo Brasil e pelo Rio Grande, nos primeiros meses de 1845, contêm passagens reveladoras do espírito que orientou brasileiros e gaúchos na construção da Paz Farroupilha. A proclamação de Manuel Lucas de Oliveira, referindo o acordo negociado com o Império do Brasil e conclamando os gaúchos à paz, após os 10 anos de luta conclui textualmente:
“Dizei comigo, somos outra vez brasileiros (o grifo é meu) seremos sempre idólatras da liberdade constitucional”.
Em carta a Fontoura, o Duque de Caxias foi enfático:
“Não foi a política por mim seguida nesta Província, nem os meus esforços, as causas a que deve ser atribuída a pronta pacificação do espírito do Povo. Elas têm verdadeira origem nos briosos e patrióticos sentimentos dos Rio-grandenses (o grifo é meu), é só a eles cabe tão subida glória”.
Foi fácil para os chefes farroupilhas, que eram homens de extraordinária qualificação (esta é uma das principais características da Revolução de 35), convencer o povo gaúcho a concordar com a Convenção de Paz entre o Brasil e os Republicanos (título original do documento manuscrito e assinado por Caxias, contendo as 12 cláusulas da Paz do Ponche Verde), porque estavam igualmente diante de um estadista de extraordinária qualificação. Caxias era indubitavelmente o nome de maior prestígio do Império. Depois de ter assegurado, em sua proclamação, que ninguém seria molestado judicialmente ou por qualquer outra maneira pelos atos praticados durante o tempo da Revolução (assim mesmo ele escreveu usando o termo Revolução), concluía Caxias:
“Esta magnânima deliberação do Monarca Brasileiro há de ser religiosamente cumprida. Eu o prometo, sob minha palavra de honra” (o grifo é meu).
Com a palavra de honra do pacificador, era selada a paz.
Cabe esta exegese dos textos evocadores da efeméride, para indicar que o espírito do tradicionalismo, hoje por nós cultivado, esteve sempre presente, impregnando os grandes passos dos construtores do Rio Grande. A emblemática figura de Caxias ilustra o quanto foi o Rio Grande abençoado por contar com brasileiros de extraordinária valia nos momentos decisivos da história.
Pode-se, aliás, acrescentar que, em sua formação social, o Rio Grande contou com a presença de brasileiros de escol, provindos de todas as partes do país. A própria Revolução Farroupilha, episódio máximo de nossa história, não foi apenas a guerra civil mais longa e mais importante da história do Brasil. Foi igualmente uma revolução transrio-grandense, que contou com a presença maiúscula de ilustres mineiros, baianos, fluminenses, catarinenses, paulistas, para não mencionar os italianos, os platinos, os anglo-americanos e os colonos alemães. Começa-se a entender melhor a maneira de ser do gaúcho quando se lê, nas Memórias de Garibaldi, aquele comentário em homenagem aos heróis tombados na Guerra dos Farrapos:
“Ó liberdade! liberdade! Que rainha da terra se pode encher de orgulho por um cortejo de heróis como estes que tens no céu!”
Para se entender o sentido e o alcance do tradicionalismo é necessário examinar o seu substrato, o conteúdo da tradição, sua origem e consistência. Impõe-se preliminarmente considerar a categoria antropológica cultura, parte integrante e indispensável de qualquer sociedade. É preciso também atentar para a autonomia do Rio Grande como sociedade diversa da brasileira, ainda que a ela fortemente integrada e federada por laços conscientes de opção histórica.
Impõe-se fazer aqui uma digressão teórica. Entre os seres humanos, a principal unidade na luta pela vida não é o indivíduo, mas o grupo, a sociedade. Esta realidade, que varia e assume diferentes estruturas no tempo e no espaço, possui alguns elementos constantes, cujo exame permite a compreensão de seu funcionamento.
Sendo assim, para se compreender uma sociedade, é necessário decompô-la em seus elementos, em suas partes analiticamente discerníeis e nela integradas logicamente. Identificar esses elementos é como identificar os sub-sistemas de um sistema geral. Encontram-se então, no mínimo, três contextos que se interinfluenciam simultaneamente, se interpenetram e estabelecem relações de interdependência e complementaridade. São eles:
1º – O plano da personalidade ou psíquico, que corresponde à maneira de ser dos indivíduos que compõem a sociedade (suas idéias, suas preferências, suas reações emocionais condicionadas, seus papéis, suas ações);
2º – O plano social propriamente dito, que corresponde às instituições existentes na sociedade (familiares, econômicas, morais, políticas, etc.);
3º – O plano cultural, que diz respeito aos valores determinantes dos hábitos, dos costumes, à mentalidade, à “soma de forças espirituais, de saber e de poder humano, de atividades mentais, que se superpõem (e por vezes se opõem) ao jogo dos instintos e das forças naturais” (Birket-Smith).
Os três planos mencionados não estão em pé de igualdade, mas interagem numa interdependência hierarquizada, em função do nível de informação e de energia de cada um deles. Tanto mais importante é o contexto quanto mais rico for em informação, e tanto mais baixo quanto mais rico for em energia. O posto de maior hierarquia cabe ao plano cultural integrado exclusivamente de elementos simbólicos (idéias, crenças, valores) que controlam e conduzem o comportamento dos indivíduos que compõem a sociedade. O de menor hierarquia está no plano da personalidade que inclui a cultura assimilada (internalizada) por cada indivíduo e constitui a motivação, o impulso fundamental do comportamento das pessoas.
Aí está a estrutura da sociedade. Os componentes estruturais se revelam nos três planos: o dos valores (cultura), o das normas praticadas (instituições) e o dos papéis (a personalidade, que abrange a adaptação dos indivíduos ao grupo). Qualquer transformação na estrutura depende previamente de mudanças nos valores da sociedade.
Penso que é neste patamar que deve ser situado o conteúdo da tradição gaúcha. Ela é uma criação coletiva. Não foi inventada por ninguém, no sentido de ter sido criada por alguém, como iniciativa individual. A menos que dermos ao verbo inventar o sentido etimológico, do latim invenire, que quer dizer encontrar, achar, identificar. Quando no século passado foram fundadas as primeiras entidades tradicionalistas, os fundadores nada inventaram, mas apenas identificaram os valores da tradição e procuraram organizá-la como um movimento. O tradicionalismo é, pois, um movimento que se caracteriza por identificar os valores da tradição inseridos no plano da cultura da sociedade Rio-grandense, com o intuito de preservá-los, difundi-los, organizá-los. Sua força extraordinária e a pronta resposta que obtiveram seus incentivadores decorrem da própria hierarquia do plano cultural em que se encontra, rico que é em informação e em valores, aptos a despertar ampla adesão no plano institucional e entusiástica energia no plano do comportamento individual.
Quando em 1857 se fundou no Rio de Janeiro a Sociedade Sul-Rio-grandense, obteve dos gaúchos aquerenciados na Corte pronta adesão, que ainda hoje tem continuidade, no especial brilhantismo no CTG “Desgarrados dos Pago”. Semelhante resposta obteve o Major Cezimbra Jacques, quando em 1898 fundou em Porto Alegre o “Grêmio Gaúcho”, igualmente a “União Gaúcha”, fundada em Pelotas em 1899, com a participação de João Simões Lopes Neto, bem como o “Grêmio Gaúcho” de Santa Maria, surgido também da iniciativa de Cezimbra em 1901.
Seguiu-se um período de pausa, que pode ser interpretado como um compasso de espera diante das grandes transformações por que passou a sociedade na primeira metade do século XX. Valores permanentes, contudo, como os da cultura gaúcha, não podiam continuar por mais tempo em estado social de latência. A inteligente agitação cultural provocada em 1947, desde o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, pelos jovens João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, Luiz Carlos Barbosa Lessa e pelo poeta Glaucus Saraiva, funcionou como um sopro impetuoso que acendeu o braseiro dos antigos valores. Em 1948 é fundado o “35” Centro de Tradições Gaúchas, modelo de muitos outros que a seguir surgiriam. Cresce então o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), que muito antes de ser instituído por lei, já estava institucionalizado na sociedade Rio-grandense. Isto por que os valores são realidades impregnadas de tropismo, possuem atrativos irresistíveis e impulsionadores da ação. Há neles um sentido teleológico, finalístico, ou, como diria o saudoso professor Armando Câmara, eles são o próprio “ser visionado em ordem a sua finalidade”.
Em 1954, foi aprovada a tese de Barbosa Lessa “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo Gaúcho”. Em 1955 Carlos Galvão Krebs apresenta a sua tese “A Função Aculturadora dos Centros de Tradições Gaúchas”. Em 1961 Glaucus Saraiva contribui com a “Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista do Rio Grande do Sul”. Em 1961 Antônio Augusto Fagundes acrescenta “A Função Social do MTG”. São todos documentos de grandes respeitabilidade, que dão consistência e unidade ao MTG, apontando-lhe os aspectos simbólicos, materiais e imateriais, que justificam a ideologia do movimento.
Se os valores da tradição situam-se no plano da cultura, convém lembrar que é a cultura que distingue e identifica os povos. Ao contrário das sociedades, as culturas são únicas, são singulares. O comportamento social é sempre culturalmente determinado. A sociedade gaúcha tem se distinguido freqüentemente da sociedade nacional, exatamente por suas características culturais. Embora distinta em relação às demais regiões do Brasil, ela se vincula e integra à comunhão nacional porque o patriotismo consciente tem sido um de seus valores máximos. A presença dinâmica de gaúchos em todos os Estados da Federação, a forma como se entrosam às comunidades regionais e a maneira como são acolhidos, constituem a prova de que as diferenças existentes entre o Rio Grande e o Brasil, longe de desunir é motivo de enriquecimento e união.
Fugindo ao etnocentrismo, deve-se destacar que não estamos dizendo que somos os melhores, mas somos indubitavelmente diferentes. A seguir destaco alguns valores básicos da tradição gaúcha, que embora não sejam exclusividade nossa, têm a sociedade Rio-grandense até devido a nossas idiossincrasias históricas, intensidade e características próprias. Eles fazem parte da maneira gaúcha de ser brasileiro.
– o espírito associativo (práticas de cooperação de solidariedade e apreço pela comunidade que têm suas origens na necessidade de união para a defesa nas guerras de fronteira e na necessidade de sobrevivência dos imigrantes);
– o nativismo (o amor ao solo natal, que não foi dado gratuitamente: diferente de outros brasileiros, sabe o gaúcho que não foi um donatário, mas um conquistador – “esta terra tem dono…”);
– o respeito à palavra dada (como se observou no primeiro capítulo, só a palavra de honra do Duque de Caxias conseguiu fazer os farrapos deporem as armas);
– a defesa da honra (apenas como exemplo, lembre-se que o maior desastre moral dentre as hostes farroupilhas decorreu de ofensas à honra e culminou com o lamentável duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires);
– a coragem (o próprio Rio Grande não teria surgido se não fosse a coragem dos pioneiros, o desassombro dos imigrantes);
– o cavalheirismo (o gaúcho sempre se distinguiu pela nobreza das ações, pela prática de altos feitos na consideração dos seus semelhantes);
– a conduta ética (basta que se observem os grandes escândalos da vida política nacional e se constate que eles não costumam medrar no Rio Grande);
– o amor à liberdade (as idéias liberais nem eram conhecidas no Brasil, quando aqui se fez uma revolução em nome da liberdade, igualdade e humanidade);
– o sentimento de igualdade ( a história da escravatura no Rio Grande foi diferente, a participação dos negros nas tropas farroupilhas foi emblemática, não se observa no Rio Grande a acentuada hierarquização da sociedade comum na maior parte dos outros Estados federados);
– a politização (desde o berço obrigou-se o gaúcho às lides políticas, o estandieiro era chefe político e militar, o peão soldado e cidadão);
– o senso de modernidade (mais pioneiro do que bandeirante, o gaúcho madrugou em relação ao Brasil no liberalismo, na criação de um partido político moderno, no exercício da ditadura positivista, etc.).
Uma maneira de ser, uma forma de convivência indubitavelmente distinta. O gaúcho tem uma personalidade básica determinada por uma formação histórica diferente, por uma sociedade que teve uma formação diversa da sociedade nacional, por uma cultura singular e com características próprias.
Abro nesta parte mais uma digressão teórica para refletir sobre o MTG, não tanto em nível institucional ou organizacional, mas especialmente em sua realidade social enquanto movimento. A expansão dos CTGs por todos os recantos do Rio Grande, e fora dele, logrou um grau tão acentuado de adesão e aceitação social, que se impõe uma explicação sobre o sentido e o alcance de sua trajetória.
Valho-me do modelo apresentado pelo professor Alain Touraine (mestre francês de nosso atual Presidente da República), um dos autores mais renomados no estudo dos movimentos sociais. Para Touraine, um movimento só se afirma quando “reúne certos princípios de existência” que lhe orientem a ação e a organização.
Segundo ele, todo movimento social precisa definir-se em relação a três princípios: o da identidade, o da oposição e o da totalidade. Pelo princípio da identidade, todo movimento social tem que assumir uma identidade, reconhecível aos olhos do público em geral e de seus próprios participantes. Nesse aspecto o movimento social se identifica, ou como porta-voz de um setor determinado da sociedade (operários, estudantes, mulheres, etc.), ou como defensor dos interesses de toda a sociedade (um movimento patriótico, nacionalista ou tradicionalista). Claro que o MTG se encontra nesta segunda categoria.
Pelo segundo princípio, o da oposição, o movimento social se distingue por defender valores não reconhecidos pela totalidade da sociedade. Se todos os membros da sociedade os reconhecessem, não faria sentido o movimento. No caso em análise, o MTG não foi necessário quando os valores por ele defendidos estavam amplamente institucionalizados na sociedade Rio-grandense. A enorme difusão cultural vivida no presente século, é a grande confusão mental que provocou em nossos meios, criaram o ambiente social propício para o surgimento de um movimento voltado para a preservação daquela que deu consistência e vitalidade à sociedade gaúcha quando de sua formação. É natural que o MTG enfrente, pois, resistências, obstáculos, forças de inércia que o desafiam. Como tal precisa vencer esta espécie de oposição, apatia ou indiferença. Se o MTG não tivesse adversários, deixaria de existir enquanto movimento, para se transformar numa instituição estabelecida, perdendo sua característica fundamental de movimento que é o de angariar adeptos. A darmos crédito no esquema proposto por Touraine, o MTG, enquanto movimento, não deve constranger-se de fazer proselitismo de identificar seus adversários e saber distingui-los de seus militantes.
Pelo princípio da totalidade, o movimento precisa justificar sua ação com base em valores superiores e em ideais universais que tenham por base uma filosofia de vida. Para persistir um movimento, precisa guardar estreita correspondência entre seus objetivos e as intenções mais corretas e elevadas que se possam adotar. Segundo Touraine, os movimentos são o “lugar” estratégico onde se renovam e explicitam os valores da sociedade. Lutando por sua preservação, os movimentos atuam como agentes inovadores, podendo organizar a ação coletiva e influenciar a história de uma sociedade. Ao estudar as sociedades modernas industriais ou pós-industrais, muitos autores colocam os movimentos no centro da análise das mudanças sociais.
Os movimentos sociais costumam passar por quatro fases desde seu surgimento até alcançarem uma organização consolidada. A primeira é a fase da inquietação social, quando as pessoas estão ansiosas por alcançarem aquilo que um dia será objetivo do movimento, agem descoordenadamente, são sensíveis aos apelos e sugestões dos “agitadores”. A segunda é a da excitação popular, onde predomina ainda a desorientação, mas já começam a surgir noções bem definidas quanto aquilo que o movimento se propõe. Nesta fase os líderes gozam de grande prestígio no grupo e atuam como profetas ou reformadores carismáticos. A terceira é a fase da formalização, na qual o movimento passa a ter uma forma definida como organização, cria normas, estabelece diretrizes, estratégias e disciplina. Os líderes nesta fase atuam como dirigentes políticos. Na quarta fase, a da institucionalização, o movimento solidifica-se enquanto organização duradoura, tem um corpo de militantes permanentes e dispõe de uma estrutura para atingir os seus objetivos. É a fase em que os líderes são exigidos como administradores. Será interessante observar esta teoria do desenvolvimento dos movimentos por etapas para observar a evolução do MTG e avaliar o seu grau de amadurecimento até o presente momento.
Os autores que estudam a sociologia dos movimentos consideram que eles dependem de alguns mecanismos sociais indispensáveis. O movimento sempre tem necessidade da agitação. É a agitação que sensibiliza as pessoas e as predispõe a integrarem-se ao movimento. No movimento deve estar presente também o “esprit de corps” que leva os participantes a desenvolverem o espírito de camaradagem, faz desaparecer os sentimentos de estranheza ou indiferença e conduz à cooperação. De outro lado, nenhum movimento persiste sem apoiar-se em aspectos morais que lhe dêem legitimidade, vitalidade e solidariedade na adversidade. Nenhum movimento pode prosperar sem uma ideologia grupal. É a filosofia do movimento que deve ter respeitabilidade, prestígio e apelo popular. Finalmente, o movimento necessita de estratégias que garantam o recrutamento de novos adeptos, a conservação dos que já a ele pertencem e a busca dos objetivos que se propõe. estas considerações podem servir de instrumento para se analisar o MTG e se verificar se estes mecanismos sociais se encontram presentes em sua trajetória, conferindo solidez a sua configuração.
Tendo em vista que a sociedade Rio-grandense tem como uma de suas características acentuadas o que denominamos senso de modernidade, é natural que ela tenha se transformado e se tomado contemporânea do mundo em termos gerais pode-se dizer que o Rio Grande está realizando valentemente a sua transição do estágio agro-pastoril para o industrial e o pós-industrial, assumindo hoje quase todas as características da sociedade de massas. Neste tipo de sociedade os movimentos se transformam numa das principais formas de agrupamento intermediário. Nesta conjuntura, cabe ao MTG exercer esta função aglutinadora entre o indivíduo e a sociedade, juntamente com a função socializadora que é a de apresentar a realidade social ao maior número possível de pessoas. O MTG, enquanto movimento, se constitui num meio poderoso de participação social com capacidade para alimentar uma consciência coletiva esclarecida e combativa, tal como foi a daqueles gaúchos que construíram o Rio Grande e o integraram voluntariamente à comunidade brasileira.
Em janeiro do ano passado, no Congresso Tradicionalista realizado em Dom Pedrito, apresentei uma tese sobre o Sentido e o Alcance Social do Tradicionalismo. Nela examinei alguns valores da tradição gaúcha, procurei situar o seu conteúdo no âmbito da cultura e da sociedade Rio-grandense, analisando o tradicionalismo enquanto movimento social, suas possibilidades e perspectivas.
Pouco tempo depois, nos meses de março e abril, deparei-me com excelente trabalho publicado pelo jornalista Carlos Wagner, jornal ZERO HORA. Era um conjunto de sete reportagens sob o título geral “O Brasil de Bombachas”. Nelas se conta a história de homens audaciosos, que saíram do Rio Grande para edificar frentes pioneiras nos Estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Bahia, Maranhão, Acre, Rondônia, sem falar no oeste de Santa Catarina e do Paraná. É uma verdadeira epopéia contemporânea, os gaúchos sobrevivendo na selva, domando o solo rebelde do cerrado, semeando cidades, derrotando a floresta, mudando a paisagem do sertão.
Nesta expansão para o interior brasileiro, os gaúchos levaram sua indumentária, seus hábitos e sua cultura. Não constituíram caravanas ou expedições de caráter bandeirantista. Não foram para pilhar ou explorar. Pioneiros, foram para semear e ficar. Lá se estabeleceram e, apesar de todos os sacrifícios, na maior parte das vezes superaram os reveses e souberam construir, pelo trabalho, novos núcleos de progresso, disseminando pelo território nacional a maneira gaúcha de ser brasileiro. Os inúmeros CTGs que hoje se espalham pelo Brasil, são os grandes pontos de referência e realimentação da cultura gaúcha nestas novas áreas culturais influenciadas pelo “modus vivendi” do Rio Grande.
Vi confirmadas, neste belo estudo jornalístico, as conclusões que apresentei sobre as perspectivas do tradicionalismo. O método sociológico que utilizei para o exame do tradicionalismo foi confortado com os fatos, estes que terão sempre o primado sobre qualquer assertiva teórica. Pois o “Brasil de Bombachas” suscita uma outra forma de abordagem em torno do tradicionalismo, qual seja a do gaúcho trans-rio-grandense. E desde logo sugere a vitalidade incomum da cultura que se formou no Rio Grande, mercê de nossas peculiaridades regionais e históricas.
Estas constatações me permitem trazer, neste 41º Congresso Tradicionalista de São Lourenço, à beira da famosa Lagoa dos Patos, palco de tantas ações determinantes do caráter gaúcho, mais uma contribuição sobre o tradicionalismo. As teorias sociológicas nos permitem verificar que os processos de mudança social, quando ocorrem movidos por forças internas, endógenas, são mais consistentes, coerentes, harmoniosos e duradouros. Ao invés, quando movidos por forças exógenas, resultantes de impulsos externos, são postiços, anárquicos, desordenados e se institucionalizam com maior dificuldade.
A formação social do Rio Grande deu-se predominantemente de dentro para fora.
Diferentemente dos demais Estados brasileiros, cujo povoamento ocorreu do litoral para o sertão, o povoamento do Rio Grande tomou um sentido inverso. O colonizador europeu atingiu o interior da maior parte do Brasil através do grande número de portos naturais existentes no litoral, tendo muitas vezes optado por permanecer a beira-mar, praticando uma colonização de caranguejos, para usar a expressão pitoresca do Capistrano de Abreu. No Rio Grande foi diferente. Nossa costa marítima é retilínea, sem nenhum porto natural seguro desde a foz do Rio Araranguá, em Santa Catarina, até a baía de Maldonado, em Punta del Este, no Uruguai. Apenas a foz do rio Tramandaí e o desaguadouro da Lagoa dos Patos (que os primeiros navegadores chamaram de Rio Grande), atulhados de areia movediça, ensejavam precários atracadouros. Esta configuração geográfica diferente condicionou que o povoamento de nosso Estado se fizesse de dentro para fora.
Os grandes rebanhos bovinos que se formaram à margem direita do rio Paraná, e mais tarde nos campos do Uruguai, não tardaram a espraiar-se ao natural pelo Rio Grande, junto com os índios minuanos e charruas, que se tornaram hábeis cavaleiros. No sul do Rio Grande, como explica Barbosa Lessa, antes do colonizador europeu já havia o cavalo europeu, o juntamento europeu, o boi europeu, o carneiro europeu, o cão europeu. A seguir vieram os jesuítas, o Padre Roque Gonzales, e as Missões se estabeleceram do oeste para leste. Só não chegaram até o Guaíba porque os bandeirantes paulistas interromperam a sua expansão. Quando do Tratado de Madri e da Guerra Guaranítica que se lhe seguiu, já vinha ocorrendo a ocupação portuguesa através de Laguna e da Colônia do Sacramento. Logo seriam abertos os velhos caminhos, distribuíram-se sesmarias, vieram os açorianos estabeleceram-se as charqueadas.
Processava-se assim aqui dentro, em razão das necessidades internas, a organização da sociedade num território ao qual, nem os portugueses e nem os espanhóis tiveram acesso fácil pela via marítima. Estava reservado ao território de São Pedro do Rio Grande o papel de fronteira em movimento e ali haveria de medrar uma sociedade marcada pelo enfrentamento entre dois impérios em expansão, o português e o espanhol. Mais tarde, quando chegaram os imigrantes alemães e italianos, oriundos de sociedades mais estruturadas, identificaram formas de convívio que correspondiam às necessidades e exigências da comunidade regional, a elas se integrando e emprestando-lhes matizes diferenciados.
Em termos de Antropologia Cultural, um dos aspectos mais fascinantes da história do Rio Grande está no ajustamento dos imigrantes aos valores regionais. A vitalidade da comunidade luso-gaúcha transmitiu-se de forma indelével para as colônias alemãs e italianas. Os alemães, chegados a partir de 1824, tiveram participação direta na Guerra da Cisplatina e na Revolução Farroupilha. Os italianos, que aqui assentaram suas raízes desde 1875, não ficaram imunes às lutas entre maragatos e pica-paus e tiveram participação destacada em todos os movimentos políticos econômicos do final do século passado e do século atual.
A integração do imigrante à maneira de ser do gaúcho pode ser explicada pela afinidade entre sua cultura e os valores locais. Diferentemente do resto do Brasil, que teve uma organização política e social mais ou menos outorgada, vinda de cima para baixo (não havia sequer povo e já estávamos organizados em capitanias e governos gerais), o Rio Grande teve que conquistar o território, zelar pela sua defesa e organizá-lo de dentro para fora e de baixo para cima. Semelhante era a sorte dos colonos alemães e italianos. Enquanto nos demais Estados brasileiros se processava uma colonização por dispersão, como ocorria nos cafezais de São Paulo, com uma aculturação acelerada, no Rio Grande ocorreu uma colonização por nucleação. Aí se deu o prodígio etnológico. Do fenômeno não resultaram quistos, mas integração, um processo de aculturação onde predomina o respeito pelos valores de cada cultura. Havia uma nota comum muito acentuada entre a sociedade local e a dos recém-chegados imigrantes. Ambas tinham que fazer por si, e por si encontrar a solução para os seus problemas.
O colono trouxe os conhecimentos e as técnicas relacionadas à agricultura e a indústria que os luso-gaúchos ainda não praticavam. Estes por sua vez tinham extraordinária habilidade na criação de gado e na organização das estâncias, fatores desconhecidos dos europeus. O próprio Garibaldi, herói dos Dois Mundos, em carta a Domingos José de Almeida, não cansa de gabar o extraordinário desempenho dos cavaleiros gaúchos. Dos contatos destas culturas resultou não a oposição, mas a complementaridade.
Este espírito associativo e universalista, apto a tirar partido das diferenças e reconhecendo a riqueza da diversidade, é uma das características centrais do tradicionalismo gaúcho. É este mesmo espírito que hoje alimenta a audácia do “Brasil de bombachas”.
O príncipe de nossos escritores, o saudoso Érico Veríssimo, em seu inigualável O Tempo e o Vento, criou um personagem, o velho Fandango, que bem traduz o modo de ser do homem simples do pampa e sua percepção dos fenômenos de miscigenação cultural no Rio Grande. Mesmo criticando os alemães, Fandango demonstra por eles, na aparente hostilidade, uma secreta ternura:
“Da margem esquerda pro norte e pro mar
tem gringo demais.
Não gosto de alemão.
Falam uma língua do diabo.
Olham prá gente com um ar de pouco-caso.
Tudo neles é diferente:
as roupas, as danças, as comidas, as casas,
até o cheiro.
Quando eu vejo um homem de pele muito branca
cabelos de barba de milho e olho de bolita de vidro
até me dá nojo.
Se eu fosse governo, mandava essa alemoada embora.
Não é que eu seja mesquinho, somítico ou malevo:
Estrangeiro também é filho de Deus…”
Ao descrever os italianos, Fandango dá todas as razões para a integração das culturas gaúcha e peninsular:
“Duns anos pra esta parte, tem chegado também muito italiano.
Se empoleiraram na serra, porque a alemoada, que chegou primeiro, pegou os melhores lugares na beira dos rios.
Já andei por essas novas colônias da região serrana.
A fala deles tem música
e é doce como laranja madura
e meio parecida com a nossa.
Gostam de comer passarinho,
de fazer e beber vinho,
de cantar, de ouvir missa,
de padre e de procissão.
Vacuncés são muito moços, não pegaram a Guerra dos Farrapos.
Pois o velho Fandango teve a honra de servir com José Garibaldi,
que também era gringo,
mas gringo de senhoria.
Sabem o que foi que ele disse na sua língua atrapalhada?
Que com a nossa cavalaria era capaz de conquistar o mundo…”
O personagem de Érico situava-se no século passado. Qual não seria hoje o seu discurso, se tivesse conhecido a epopéia do “Brasil de Bombachas” e tivesse constatado que grande parte daqueles pioneiros são os descendentes dos imigrantes. Este universalismo que transcende as fronteiras artificiais do Estado (Mundo velho sem porteira), que hoje se afirma através dos fatos, demonstra a atualidade permanente da tradição gaúcha.
Quem leu o romance, ou assistiu o filme O Quatrilho, do professor Júlio Pozzenato, terá observado como as cidades da região serrana na zona de colonização tiveram o seu grande impulso no momento em que se aliou a iniciativa dos imigrantes italianos, sua agricultura e sua indústria, com os pecuaristas luso-gaúchos. A obra é rica nos diálogos dos heróis descendentes de imigrantes com os fazendeiros dos Campos de Cima da Serra. Neste particular também é visível a relação de complementaridade entre as duas culturas em fase de acomodação e ajustamento. A ênfase que, nesta comunicação, acompanha o fenômeno da imigração justifica-se pelas comemorações, no ano que passou, dos 120 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
Independentemente da análise histórica e antropológica, é importante olhar um pouco mais de perto para o próprio Movimento Tradicionalista. Vale a pena frisar alguns pontos de nossa Carta de Princípios, aprovada há 35 anos no Congresso Tradicionalista de Taquara (julho de 1961) e que se mantém extraordinariamente atual. Nela se preconiza a necessidade do cultivo da tradição “como substância basilar da nacionalidade”. Que outra coisa estão fazendo os pioneiros do “Brasil de Bombachas”?
Defende a Carta a necessidade de “pugnar pela fraternidade e maior aproximação dos povos americanos”. Pois o “Brasil de Bombachas”, que veio do Rio Grande, já estava também no Paraguai, na Argentina e no Uruguai e já lá estava muito antes de se falar em MERCOSUL. Penso que nenhum Estado brasileiro está tão preparado quanto o Rio Grande para o MERCOSUL. Neste particular avulta outra nota importante: aquela fatalidade geográfica, que nos colocava na periferia cartográfica do Brasil, agora nos traz para o centro da nova comunidade transnacional. A história demonstra que os mapas se modificam com maior facilidade do que as culturas.
No seu artigo XXIII diz a Carta: “Comemorar e respeitar as datas efemérides e vultos nacionais e particularmente o dia 20 de setembro, como data máxima do Rio Grande do Sul”. E mais adiante no artigo XXIV: “Lutar para que seja instituído, oficialmente, o Dia do Gaúcho, em paridade de condições com o Dia do Colono e outros “Dias” respeitados publicamente. No ano de 1995 pudemos comemorar, pela primeira vez, o dia 20 de setembro como feriado estadual. Foi preciso que um tradicionalista no Congresso Nacional, o modesto signatário desta comunicação, propusesse projeto de lei permitindo aos Estados a fixação de um feriado estadual na sua data máxima. Sancionada a lei pelo Presidente da República, hoje o Rio Grande pode celebrar condignamente o dia 20 de setembro.
Este mesmo Congresso Tradicionalista que realizamos todos os anos, agora em sua 41ª edição, é uma súmula do que defende nossa Carta de Princípios. O Rio Grande vive hoje momentos difíceis. Se a natureza lhe foi predominantemente dadivosa, não deixam algumas de suas manifestações de serem adversas e até hostis. A longa estiagem que destruiu nossas lavouras e a enchente catastrófica que lhe seguiu nos trouxeram este quadro de problemas, justamente no momento em que nos reunimos neste Congresso Tradicionalista de São Lourenço.
Oriento-me, então, pelo primeiro artigo de nossa Carta de Princípios: “Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do bem coletivo”. A mensagem que podemos enviar a todos os irmãos gaúchos, nesta hora difícil, é a da solidariedade. O ideal de “HUMANIDADE”, gravado nos símbolos farroupilhas, é o fundamento de todo o tradicionalismo. Ele vem acompanhado daquela certeza de que o Rio Grande, que sempre soube fazer por si, haverá de vencer. Em resumo, o Tradicionalismo Gaúcho se fundamenta na singularidade da história de um povo que se fez de dentro para fora, de baixo para cima. Temos um passado que é parte integrante de nossa identidade. Nossa memória coletiva não se compõe apenas de heróis, mas sobretudo de grupos e comunidades que souberam escolher soluções e eleger seu próprio destino. O dinamismo e o espírito de iniciativa dotaram o povo gaúcho de um pioneirismo que hoje se espraia por todo o país, e até mesmo para além de suas fronteiras, comprovando com os fatos a valia de nossa tradição. Todas as culturas que se confluíram para o Rio Grande moldaram-se numa matriz de compreensão e solidariedade. As lutas do passado, as horas de provação nos ensinaram a superar as dificuldades, dando-nos as mãos. A tudo soubemos vencer, dada sobremodo nossa imensa capacidade de amar. Tal como diz o nosso cancioneiro, é o meu Rio Grande do Sul, céu, sol, sul, terra em flor, onde tudo que se planta cresce e o que mais floresce é o amor”.
“O gaúcho é um produto histórico de três fatores principais: o habitat dos Pampas, o regime pastoril e as guerras platinas. Estes três fatores, agindo em colaboração, modelam este tipo específico, (…) cuja psicologia é particularíssima, especialmente no aspecto político” (Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil).
Pela terceira vez consecutiva, compareço ao mais importante evento anual do MTG, apresentando uma comunicação sobre o sentido e o alcance social do tradicionalismo. Chego ao 42º Congresso Tradicionalista Gaúcho, que se realiza em Santo Augusto, no início deste 1997, reapresentando o tema sob o prisma da consciência tradicionalista e seus reflexos sobre a cidadania.
Sinto-me feliz em ver que, em nosso 42º Congresso, serão abordados assuntos de grande atualidade. Entre outros pontos, será discutida a função social e cultural de nossos CTGs, será analisado o nosso relacionamento com os Poderes Públicos, será examinada nossa participação no movimento musical dos festivais nativistas. Haverá inclusive uma discussão sobre a metavisão do tradicionalismo, onde se incluirá a expectativa que os órgãos governamentais nutrem em relação ao MTG.
Temos, assim, que procurar ir além, transcender aos meros fatos, buscar o sentido e o alcance daquilo que somos. Costumo recorrer à história, a mestra da vida, para frisar a singularidade e a originalidade de nossa tradição e de nosso tradicionalismo. O Brasil é uma sociedade multirregional. Sua vocação federalista faz com que cada região, cada Estado-Membro construa, de um lado a própria autonomia, de outro a participação de decisão política nacional.
O passado gaúcho tem inúmeros acontecimentos que ajudam a entender nossas ações. Tomo como exemplos a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista. Como observou Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, com a Revolução Farroupilha, o Rio Grande objetivou não a autonomia radical, o separatismo ou a desintegração, mas a participação nas decisões do império, barganhando com ele até quando derrotado. É possível acrescentar que, na Revolução de 1893-95, os federalistas mais perseguiam estes objetivos diante da República recém instalada do que se opunham ao autoritarismo castilhista.
Esta postura diante do poder central não se deve a questões geográficas, ao alegado isolamento do Rio Grande, mas pode se explicar pela política que aqui se pratica, pela economia local e, sobretudo, pelos valores culturais que distinguem o homem do Sul. A expansão e a posse do território gaúcho se deu de maneira inteiramente diferente das outras regiões. É natural que o duro processo de apropriação, ou conquista da terra, resultante na maioria das vezes das guerras de fronteira, tenha despertado simultaneamente no espírito dos Rio-grandenses o desejo de influir nas decisões dos governos e na ação do Estado. Era natural que os pioneiros do Rio Grande assim procedessem, até porque no sistema patrimonialista português, mais do que a atividade econômica precede à política, era esta que determinava aquela. Eis aí a lógica da sesmaria, onde o poder político outorgado ao sesmeiro lhe assegurava os resultados econômicos que adviriam.
A imensidão do Pampa na fronteira móvel de vários séculos e o caráter militar, ou para-militar, dos líderes locais propiciaram uma ação política de fluxo e refluxo. Ora nos retraímos, ora procurávamos expandir nossa influência, não raro de forma revolucionária e autoritária. A imigração, especialmente a açoriana, a alemã e a italiana, veio temperar e modificar em parte esta maneira de ser, alcançando-nos formas diferentes de operar a economia, de convivência social e política.
Na Primeira República, entre 1895 e 1928, estivemos sob a influência autoritária do castilhismo e do borgismo. De um lado foi um período de retraimento do Rio Grande, garantido pela hegemonia positivista do Partido Republicano Rio-grandense. De outro, foi grande nossa influência no poder central, na medida em que Pinheiro Machado, aliado aos militares, derrotou a campanha civilista de Ruy Barbosa, fazendo eleger um Presidente gaúcho, o Marechal Hermes da Fonseca, naturalmente um militar. Este se reconhecia instrumento político de Pinheiro Machado, cuja influência foi absoluta. Hermes foi um Presidente administrativo. O político de fato era Pinheiro Machado, que fundou o Partido Republicano Conservador, através do qual tentou impor sua influência e a do positivismo Rio-grandense a todas as oligarquias estaduais, projeto que não consumou porque a morte lhe sobreveio de forma violenta e inesperada.
O período castilhista-borgista foi também a fase de gestação do movimento insurrecional de 1930, quando o Rio Grande passou a ter a hegemonia do processo revolucionário. Na Revolução de 32 e na Constituinte de 34 derrota o projeto moderno-liberal de São Paulo e impõe ao país um modelo de modernização conservadora, com bases negociadas e pragmáticas, desmobilizando os partidos e dando à administração feições técnicas pretensamente neutras, que culminariam, no Estado Novo em 1937. Mais tarde, entre 1964 e 1985, foi forte a influência do Rio Grande na política nacional, com Presidentes militares gaúchos ou, pelo menos, influenciados pela formação ensejada pelo Colégio Militar de Porto Alegre. Nestes anos, conheceu o país a mais formidável expansão econômica de sua história, palmilhando caminhos estranhamente similares aos passos praticados pela Revolução de 1930.
Nos fins dos anos 70 e início dos anos 80, os militares promoveram a transição política de forma estratégica e deliberada (Geisel e Figueiredo). Quando em 1985, ironicamente através do Colégio Eleitoral, inaugurava-se a República Nova, esmorecia o Rio Grande mais uma vez na liderança nacional, que passou para as mãos de São Paulo, Minas e Nordeste. Passou ser incomensurável o poder das oligarquias nordestinas. Todo o país, sem excluir as áreas mais desenvolvidas e esclarecidas, foi submetido a decisões de natureza casuística, quase sempre baseadas no familismo amoral, próprio das sociedades arcaicas e oligárquicas. É significativa a reserva que o Rio Grande tem hoje em relação à orientação do poder central, exatamente porque não se afina com sua tradição. É possível perceber que a sociedade gaúcha voltou a uma postura de retraimento, na expectativa do retorno de um poder central ético, responsável. O recente crescimento político de setores fundamentalistas, particularmente na capital do Estado, pode ser atribuído à promessa de decência que se contrapõe na imagem ao que se pratica no plano federal.
São as origens que, nestes momentos, falam mais alto. Entramos na história do Brasil de forma diferenciada, quase três séculos após o descobrimento. Nosso chão não recebemos gratuitamente, e temos consciência de que o conquistamos lutando, não contra índios indefesos, mas contra um império europeu e aumentando em muito os territórios do Brasil. O federalismo, para nós, tem um significado efetivo, e quando influímos no poder central não o fizemos para pilhá-lo em nosso favor. Já em 1845, quando nos reintegramos ao Brasil na Paz do Ponche Verde, obtivemos a garantia de um “status virtualmente federativo”.
Nenhum estado se valeu tanto do federalismo para modernizar-se. A imigração nos ensejou a formação de uma classe média respeitada, a primeira a surgir no Brasil. Desfrutamos de uma estrutura social equilibrada. Sem sermos os mais ricos, temos razoável distribuição de renda. Há entre nós pobres, é verdade, mas não miséria de massa como a existente em outras regiões. Nosso nível de politização e civismo é apreciável. Mal ou bem, a partir de 1930 nossos políticos lideraram a primeira modernização do Brasil. Ela não partiu da abastada região Sudeste, para embaraço dos historiadores do centro do país. Nada nos humilha tanto hoje, no atual estágio de retração, como a ameaça de nordestinização do sul.
Nosso brio regional, longe de se empobrecer no bairrismo, deve se reabastecer no tradicionalismo. Nele encontramos nossa vocação federalista, que não aceita uma União espoliadora e incompetente, mas deseja construir com autonomia o futuro, sem quebra do sentido nacional.
Cresce entre nós a consciência tradicionalista. É impressionante a vitalidade de nossos CTGs, de nossos festivais de música nativista, de nossos rodeios. O consumo dos produtos culturais voltados para os temas do Rio Grande é enorme. O sucesso dos jornais, revistas, livros, livrarias e feiras sobre assuntos gaúchos atestam o interesse pela tradição. A cultura tradicionalista não está apenas nas áreas rurais, mas conquistou as cidades, onde os jovens fazem questão de tomar chimarrão, vestem bombachas ou saias rodadas e apreciam a música regional. Mais de 75% da população gaúcha mora, hoje, em cidades e a maioria das pessoas que adotam hábitos tradicionalistas são pessoas sem experiência rural. Está aí a força dos valores de nossa sociedade no plano da cultura, confirmando a tese que apresentei há dois anos no Congresso Tradicionalista.
Esta consciência se avoluma, para surpresa do pesquisador, numa época em que o país está mais homogeneizado do ponto de vista político, econômico, de transportes e comunicação de massa. As sofisticadas cadeias de mídia eletrônica, com enorme influência sobre a padronização dos costumes, não interferem na afirmação da identidade regional, nem diminuem a força do tradicionalismo, tanto mais forte, quanto mais moderno, urbano e industrializado se apresenta o Rio Grande.
Mais do que isto, o Tradicionalismo abre as porteiras. Estão surgindo os Movimentos Tradicionalistas Gaúchos de Santa Catarina, do Paraná, de Mato Grosso do Sul e existe até uma Federação Paulista de Tradições Gaúchas. Os CTGs que se multiplicam pelo Brasil estão recuperando a figura humana do gaúcho. No ritual do mate, processa-se uma verdadeira escola de sociabilidade, compreensão e solidariedade. Nas invernadas artísticas e nos fandangos se transmitem importantes noções de estética e sociabilidade. Nas invernadas mirins se opera a complementaridade das atividades escolares. Não é um mero “reviver o passado”, mas, como acentua Barbossa Lessa, é “resgatar do passado, a esperança perdida”.
O fenômeno do tradicionalismo desperta a atenção dos cientistas sociais, que perceberam não tratar-se de modismo, ou onda passageira, menos ainda de um escapismo voltado para um tempo idílico que não existe mais e talvez nunca tenha existido. Ao contrário, é um movimento com enorme eficácia sobre o comportamento e a cidadania. Tem mística, tem os pés no chão, sentido histórico, consciência do passado e perspectiva de futuro. O Rio Grande vê no tradicionalismo o sentido comunitário que a cultura gaúcha empresta à sociedade. O tradicionalismo é um movimento que afirma a identidade do gaúcho, contrastando-a freqüentemente com outras identidades e afirmando seus caracteres diacríticos.
Os tradicionalistas sabem que só se chega ao nacional através do regional e conhecem a excelência de ser brasileiro à maneira gaúcha. Sabem também que este Brasil que aí está, e que chegará em breve a um PIB de um trilhão, não existiria sem o Rio Grande. Concluo com o testemunho competente do historiador Nelson Wernek Sodré:
“O gaúcho a cavalo, como o gaúcho a pé, guarda um simbolismo de alta significação. Os costumes mudaram, como é natural, mas o cerne permaneceu. (…) O Rio Grande está exportando gaúchos para todos o País, e esses gaúchos estão abrindo novas fronteiras por toda a parte. Esse traço denuncia crise. Porque um Rio Grande sólido, estável, mas acolhedor de mudanças profundas, sempre em favor de sua gente, faz muita falta ao Brasil.”
“O gaúcho é um produto histórico de três fatores principais: o habitat dos Pampas, o regime pastoril e as guerras platinas. Estes três fatores, agindo em colaboração, modelam este tipo específico, (…) cuja psicologia é particularíssima, especialmente no aspecto político” (Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil).
“Em lugar de ser um obstáculo à globalização, a regionalização pode ser vista como um processo por meio do qual a globalização recria a nação, de modo a conformá-la à dinâmica da economia transnacional. O globalismo tanto incomoda o nacionalismo como estimula o regionalismo. Tantas e tais são as tensões entre globalismo e nacionalismo que o regionalismo aparece como a mais natural das soluções para os impasses e aflições do nacionalismo” (Octavio Lanni, A Era do Globalismo, 1997).
“Quanto maior a economia mundial, mais poderosos são os protagonistas menores: nações, empresas e indivíduos” (John Naisbitt, Paradoxo Global, 1994).
Neste início de 1998, compareço ao maior evento cultural anual do Movimento Tradicionalista Gaúcho, desta vez para falar do sentido e alcance social do tradicionalismo no plano da globalização.
Os últimos meses de 1997 foram marcados por acontecimentos muito fortes, no mundo inteiro. Os fatos ocorreram com inédita rapidez e abrangência. O que se dava na Coréia, na Tailândia ou no Japão, repercutia instantaneamente em todo o mundo e chegava aos mais remotos rincões do Rio Grande, influenciando nossa economia, nossa vida, nossos hábitos.
É este mundo no qual todos estão relacionados, integrantes e interdependentes que pretendo desta vez abordar. Não só. Procurei mostrar os laços que existem ou podem existir entre a sociedade global e a sociedade regional. Procurei vislumbrar as perspectivas do tradicionalismo no universo do globalismo. Terei o prazer de afirmar que, também neste campo, a cultura do Rio Grande tem o que dizer e acrescentar.
A globalização é o triunfo da lei da oferta e da procura. Seus dogmas são a desregulamentação, a liberdade total para o comércio e para o fluxo de capitais, a privatização das empresas estatais. Com a queda do Império Soviético desapareceu a ditadura do proletariado, mas boa parte da humanidade sujeita-se à ditadura do mercado internacional. Este ameaça o Estado e a própria estabilidade democrática. Os governos deixam de lado questões cruciais de seus povos para atender aos interesses da economia transnacional, em detrimento de sua legitimidade e do próprio Estado democrático.
Se contém inúmeros progressos, a globalização se dá indubitavelmente numa onda de dificuldades para a civilização. De um lado ela apresenta novidades fascinantes, de outro cria circunstâncias selvagens, iconoclastas. Tamanho é o efeito negativo, do ponto de vista político, que qualquer pessoa bem intencionada percebe o quanto são imperiosas e inadiáveis, já agora, a recuperação do Estado e a restauração do primado da política sobre a economia.
No plano cultural, a globalização tenta se sobrepor às raízes dos povos. Na Amazônia, no interior do Rio Grande, no Rio de Janeiro, na Rússia, na Índia ou na China e até nos países islamistas, o contato com mensagens provenientes de milhões de telas de televisão e computadores provocam os mesmos gostos, os mesmos desejos, insinuam os mesmos valores, sugerem a mesma fantasia de vida. Em toda a parte a juventude organiza suas preferências pressionada para padrões ho